Câmera Lenta, de Marília Garcia – Tempo, Deslocamento e Paralisia

 

Tempo

Deslocamento

Paralisia

Três palavras para tentar compreender a poesia de Marília Garcia no livro “Câmera Lenta” (Cia da Letras, 2017).

Câmera Lenta capaGarcia é a vencedora de 2018 do Prêmio Oceanos, um dos principais em literatura em língua portuguesa. O que quer dizer que o livro “Câmera Lenta” foi considerado pelo júri como o melhor livro entre as centenas ou milhares analisados pelos julgadores, em todos os gêneros. Não é pouca coisa.

É difícil falar sobre livros e literaturas sem rotulá-los, enquadrá-los. Cada rótulo é uma subtração. Uma injustiça para um livro como este, tão plural, quase indescritível, que joga com referências, imaginação, memória, criação, recriação, invenção, realidade surreal.

Escolho essas três palavras para dizer que essa foi a minha forma de redução para tentar capturar para mim essa escrita e assim tentar explicá-la a partir da minha experiência. E a minha experiência é diferente da sua, caro leitor, então discorde. Mas para discordar é preciso ler. Quando ler, sua discordância só fará sentido a partir das minhas palavras. E o “Câmera Lenta” funciona mais ou menos assim. A partir das palavras de Marília Garcia, que surgiram de uma realidade dela, uma realidade poética, construímos a nossa realidade. E duvidamos do que é real e do que é poético.

Por isso, escolhi essas “palavras-chave”. Que, na verdade, não sei se explicam alguma coisa. Mas é uma tentativa de mapear e identificar o meu próprio engano. Que divido com vocês:

Tempo

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Foto por Flickr em Pexels.com

O tempo é imponderável. Nem a lembrança, nem a memória conseguem controlá-lo.

Memória é reconstrução. 

Lembrança, um gatilho que parte do presente e se descongela, esparramando-se pelo que parece que foi, pelo que ainda é e pelo que pode ser no porvir.

Ao descongelar o tempo, a poeta revela seu processo. De onde vem o poema e para onde a poeta quer que ele vá. Mas por vezes o próprio poema resiste, toma outros caminhos, rebela-se e o escritor tem de decidir entre domá-lo ou libertá-lo.

Os primeiros versos do livro são lembranças. A partir dele, durante as próximas dezenas de páginas, a poeta embaralha o tempo com as memórias que vão e vêm. Ela brinca com o presente que é diferente entre o momento em que ela escreve e o momento em que o leitor lê aquelas mesmas palavras.

Desse jeito:

Convivem na escrita três diferentes “presentes”: o momento presente da lembrança, o momento presente da escrita – em que a autora tenta capturar e compartilhar a lembrança – e o momento presente da leitura – em que o leitor faz sua interpretação a partir de suas próprias vivências e lembranças.

Há uma ordem cronológica nesse processo, evidente, mas no instante em que a poesia é lida por alguém, essa ordem se embaralha. A autora trabalha (ou brinca) com isso o tempo todo ao se referir no mesmo poema à lembrança, à escrita e à pessoa que lê. 

A estrutura da linguagem e a sequência de poemas fazem com que o livro se pareça com prosa, um romance fragmentado, na medida em que as lembranças – e a reflexão sobre elas – vão se sucedendo e interconectando.

Na poesia de Marília Garcia, o tempo é mais do que parábola, é circular, espiral, talvez uma forma de labirinto multicircular em que vamos e voltamos à procura de uma saída. Há saída?

Deslocamento

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Foto por Pixabay em Pexels.com

O deslocamento, dentro de “Câmera Lenta” é espacial, temporal e emocional.

Temporal, já vimos acima. Resta viajarmos pelos outros. Tento resumir:

Marília Garcia está sempre em deslocamento e leva a poesia com ela por onde vai. Nem sempre sabemos onde ela está com seus versos, mas quase nunca é no mesmo lugar. É no Rio, sua cidade natal. Em São Paulo, no frio ou calor tomando um banho, como em “A poesia é uma forma de resistores?” de seu livro anterior. É do outro lado do Oceano. Em Portugal. Na França.

O deslocamento é feito de partidas e chegadas. Quando ela recebe um “hola, spleen” como na frase que dá nome ao primeiro poema do livro, ela está chegando a algum lugar. Mas com isso subentende-se que ela também acabou de partir.

O livro contém algumas referências de locais já em nomes dos poemas, como em “pelos grandes bulevares”, “uma equação no hyde park”, e há pontes, ruas, aeroportos, e outras “ferramentas” que auxiliam nos deslocamentos.

A poeta gosta de mapas e cartografias. Suas lembranças passam por esses elementos. No depoimento em vídeo “tem país na paisagem”, disponível no canal da artista no YouTube, os mapas projetados que parecem fotos aéreas são, na realidade, lágrimas secas, numa citação da artista plástica Rose-Lynn Fisher. “Atlas temporários”, como descreveu Garcia, que publica neste “Câmera Lenta” uma versão compacta deste depoimento, num deslocamento de linguagem, um deslocamento poético. Variações sobre um mesmo tema.

No livro, as lágrimas se transformam em uma ponte de três arcos e 124 passos, que a poeta fotografa diariamente, às 10 horas da manhã, numa tentativa de capturar o tempo. A foto tirada há um mês irá revelar algum indício do que aconteceu naquele momento? E a do dia seguinte? Novamente o tempo, uma ponte para o tempo. O deslocamento do tempo.

Paralisia

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Foto por Thierry Fillieul em Pexels.com

“uma hélice serve para deslocar

mas uma hélice serve para paralisar

Escreve Garcia no último poema do livro, “estrelas descem à terra (do que falamos quando falamos de uma hélice)”.

Deslocamento e paralisia.

O poema, entre outras reflexões, fala de acidentes aéreos. Um acidente aéreo é uma ruptura no deslocamento e no tempo. É o fim. A morte. O congelamento de um instante em um percurso interrompido. O deslocamento que não se completou.

No poema, ela diz:

“naquele dia eu estava indo

para um festival em juiz de fora

e eu ia ler um poema chamado

‘malaysia airlines’

ao chegar na pista o aeroporto

vi a hélice e          na mesma hora    pensei:

‘não posso entrar nesse avião’

eu congelei e não podia mais

me deslocar”

A paralisia nos poemas de “Câmera Lenta” é mais do que o não deslocamento. O congelar é também o do tempo e o da falta de ação. É um retrato (da ponte) na parede. É uma lágrima seca sob o microscópio. É a voz que se recusa a ler um poema. E uma linha que não fecha. É o buraco – “como se apaga um buraco?”. Lembranças em pause. É o esperar pelo ônibus no ponto errado.

O escrever de Marília Garcia necessita desse espaço de tempo paralisado. Ou, pelo menos, desacelerado.

Como fazer um poema nesses tempos tão frenéticos, em meio a um bombardeio de informações e imagens e sons?

É necessário parar, desacelerar, desapressar, como uma hélice de um avião pousado. E então refletir, imaginar, criar, seja sobre os lugares comuns ou o incomum.

É necessária uma “Câmera Lenta” para retardar o tempo e o espaço e capturá-los entre o cotidiano e o sublime.

Quem vai ler?

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Foto por Wendy van Zyl em Pexels.com

Exceto aqueles que escrevem por comércio, os escritores não sabem ao certo qual público os lerá.

Quem vai ler este texto?

Eu não sei.

Então por que e para quem você escreve?

Também não sei. Talvez nem importe.

Para quem recomendar o livro “Câmera Lenta”, de Marília Garcia?

Para todos.

É difícil dizer quem irá gostar do livro.

Por retratar, como diz Italo Moriconi na apresentação, uma “poesia do processo”, pode ser mais árida para quem gosta de versos de fácil memorização, de autoajuda, de rimas e outras características de uma poesia tradicional.

Citemos novamente Moriconi: “O texto aqui é tecido propositalmente descosturado, desalinhando e realinhando ecos e impressões sonoras, visuais e afetivas. A recostura é operada pela autorreflexão – reflexão sobre o ato de escrever no momento em que ele se dá.”

Quem aprecia a linguagem literária, quem trabalha com ela, quem admira e estuda o processo poético-literário tem em “Câmera Lenta” e na poesia de Marília Garcia um objeto de prazer intelectual. Gozem.

 

Veja e ouça Marília Garcia lendo um de seus poemas:

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